Recuo Perpétuo

 

 

 

 Recuo - Capa Completa

 

 

 

Por André Nunes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Prólogo

 

 

 

O ano era 2027. O nome de minha mestra, Helenise. Eu a conhecia havia sete anos, desde que ingressei na faculdade que ela construíra em Campos dos Goytacazes, nossa cidade natal, onde ela, além de proprietária e diretora, lecionava. Fui um dos primeiros alunos a me inscrever no curso de física, quando do momento de sua inauguração. Admirei-a desde o primeiro momento. Jamais conheci mulher tão inteligente, admirável e carismática. Helenise percebeu meu interesse pela matéria e desde então passamos a debater, dentro da sala de aula e as vezes fora dela. A paixão pela física nos aproximou de maneira memorável. Helenise me elogiava todo o tempo. Dizia que eu era um grande intelectual e que teria brilhante futuro. Receber elogios de uma mulher considerada gênio pelos jornais era motivo de orgulho total pra mim. Aos cinqüenta e três anos de idade, minha professora esbanjava qualidades. Fez fortuna logo cedo, no Rio de Janeiro, pra onde seus pais se mudaram quando ela ainda tinha treze anos de idade. O motivo da mudança, segundo ela, foi emprego conseguido por seu pai em uma siderúrgica. A mãe, humilde, costurava para terceiros. Helenise, que jamais havia tirado uma nota baixa em toda sua vida, chegou cedo à faculdade e se formou em vários campos. Simultaneamente, trabalhava. Não demorou a fundar sua primeira empresa e, brilhante administradora que era, acabou por abrir outras duas. Nunca se casou ou teve filhos, e, ao perceber que envelhecia, vendeu suas empresas e imóveis no Rio de Janeiro e retornou a Campos dos Goytacazes para morar na mansão que construíra anos atrás no terreno onde se situava o sítio em que seus pais trabalhavam quando ela nasceu e onde viveu até os treze anos. Ficamos tão amigos e chegados que passei a freqüentar a tal mansão. Os alunos da faculdade, nesta ocasião, faziam comentários perniciosos a nosso respeito. Eu odiava os cochichos maldosos e as risadinhas. Mal eles sabiam que Helenise me via como o filho que nunca teve. Eu gostava disso, pois fui adotado com um ano e meio de idade por um casal de fazendeiros e não tenho qualquer recordação de meus pais verdadeiros. Meu pai adotivo me disse que eles me entregaram em suas mãos e desapareceram em seguida, pois não tinham como me sustentar. A única pista que deixaram de seu paradeiro é que iriam morar numa cidade vizinha chamada São Fidélis. Meu pai adotivo me deu de tudo e tinha carinho por mim, mas sua esposa me odiava. Insinuava todo o tempo que eu era filho dele com alguma amante. Ela era má, rancorosa e triste. Quando caía em depressão, precisava ser internada, e, um dia, enlouqueceu. Meu pai ia visitá-la de tempos em tempos, até que, num domingo, quando se preparava para sair, recebeu uma ligação. Ela havia morrido. Ele me abraçou e chorou. Caí em prantos, dizendo que a culpa era minha, mas meu pai me tranqüilizou, alegando que minha mãe adotiva sempre teve aquele temperamento, mesmo bem antes de eu ir morar com eles. Peguntei-lhe se eu não era mesmo seu filho de sangue, e ele negou, mas me disse que me amava como se eu realmente fosse. Sorri. Hoje em dia, ele depende de mim para praticamente tudo. Sofreu um acidente vascular e quase não sai mais da cama. Apesar disso, não parece ser infeliz. Assiste televisão o tempo todo e se diverte com os humorísticos. Eu fico muito feliz ao vê-lo sorrir.

Em uma de minhas visitas a Helenise, indaguei-a sobre a movimentação de pessoas de branco no interior de sua residência. Havia certos trechos da casa que mais pareciam um complexo laboratorial. Ela me olhou por momentos em silencio, depois me puxou pelo braço, me guiando até uma ala que nunca havia estado antes. Abriu a porta de aço e apontou para uma grande máquina que possuía vidros ao seu redor, permitindo que se enxergasse parte de seu interior. Nunca havia visto nada parecido. Parecia saída de um filme de ficção cientifica.

  • Mas o que é isso?

  • Isso, meu filho, é o que chamo de saltador temporal.

  • Saltador temporal? Pra que serve?

  • Não te parece óbvio? O nome já diz. Quando esta maravilha estiver pronta, poderei mandar alguém ao passado.

  • Você está brincando? Isso não é possível.

  • É a primeira vez que te vejo duvidar de mim, Raul. Se Hans Albert Einstein disse que era possível, então é.

  • Meu Deus... Isso é grande demais pra minha cabeça. Não consigo acreditar.

  • Vou lhe mostrar algo que vai ajudá-lo a crer.

Helenise se dirigiu até uma prateleira, de onde tirou um MD. Colocou-o em um drive de CD-ROM e em instantes o computador passou a reproduzir imagens de um local semi-desértico. Dava para se ver uma pequena tempestade de areia e alguns animais enormes ao longe. Em alguns minutos, a tempestade sessou e eu pude ver, com certa nitidez, que os tais animais, eram dinossauros.

  • O que é isso? É parte de algum filme?

  • Raul, sei que não pretende acreditar no que vou te dizer, mas este filme foi feito há 102 milhões de anos atrás, no período cretáceo superior. Antes de começar a construir esta máquina que está vendo, criei um protótipo em menor escala e coloquei uma filmadora dentro dele. Programei a máquina para permanecer por lá durante duas horas e então retornar. Foi um sucesso, como pode constatar.

  • Meu Deus, meu Deus, meu Deus!!!

  • Sim... É incrível.

  • Como pôde guardar segredo pra mim a respeito disso?

  • Eu precisava conhece-lo melhor antes. Precisava confiar em você. O que viu aqui não pode ser falado lá fora. Tenho uma equipe trabalhando comigo há anos neste projeto e até hoje ninguém procurou a mídia. Confio neles cegamente. Alguns são professores na minha faculdade.

  • Como conseguiu construir o protótipo? A partir de que?

  • A partir da minha mente, meu querido. A partir do meu conhecimento. É claro que tive ajuda de minha equipe. Sem eles, não teria sido possível. Trouxe cientistas do mundo inteiro para me ajudar. Estou gastando uma fortuna incalculável aqui.

  • Eu faço idéia. Qual sua intenção ao término da máquina?

  • Você já me conhece bem pra saber quão pacifista eu sou. Tenho um sonho dos tempos de menina. Um sonho de consertar todo o mal que atingiu o ser humano no decorrer de toda a história da humanidade.

  • Mas... Se você modificar o passado, vai alterar o futuro.

  • Descobri com minhas pesquisas que esta realidade em que vivemos é inalterável, assim como todas as outras. Quando você altera o passado de nosso tempo, está criando uma nova linha temporal. Nosso passado continua o mesmo, porém, uma nova realidade é criada. Uma nova linha temporal.

  • Fantástico! Então, isso quer dizer que as imagens que acabamos de assistir, são, na realidade, de outra dimensão?

  • Basicamente isso. Uma vez que o protótipo chegou ao local programado, uma nova linha temporal foi criada e as imagens captadas pertencem a este novo universo.

  • Meu Deus...!!! Então todas aquelas histórias e filmes sobre máquinas do tempo que foram inventadas pela criatividade do homem sempre foram, na realidade, possíveis.

  • Sim.

  • Como, então, ninguém, jamais, pensou em realmente criar algo assim?

  • Acho que não só pensaram, mas criaram.

  • Por que acha isso?

  • Porque obtive o relato de alguns cientistas que hoje trabalham pra mim. Alguns deles já estiveram envolvidos em projetos parecidos, porém, se negam a dar maiores esclarecimentos. É o sigilo ético. Tenho certeza que o ser humano já esteve no passado antes, porém, esta é uma matéria que abalaria delicadamente a população mundial. O homem não está preparado para isso. Não compreenderia. Se iniciaria uma verdadeira era de caos. A opinião pública daria um fim a tudo. Por este motivo, você jamais viu uma reportagem na televisão a esse respeito.

  • Quando a máquina fica pronta?

  • Dentro de dois dias.

  • O que? Já?

  • Na verdade, ela já está pronta. O que falta é somente inserir em sua programação os locais e momentos exatos para os saltos. Isso tem de ser feito minuciosamente. O saltador temporal, por precaução, deve se re-materializar trinta metros acima do solo. A geografia do passado era diferente. Não queremos que a máquina surja debaixo da terra. Isso mataria o usuário.

  • Helenise... Há um porém. Se nosso passado não pode ser alterado, de que adianta prevenir catástrofes? Elas não serão alteradas pra nossa civilização. Tudo continuará o mesmo pra nós.

  • Mas não para as novas linhas temporais. Em algum lugar do continuun, milhares de pessoas serão felizes. Milhares de seres humanos terão suas vidas poupadas. E isso, meu filho, não tem preço.

  • Você tem razão. Seu objetivo é lindo e puro. Só mais uma coisa. Quem irá viajar na máquina?

  • Você.

Tsunami Asiático

 

 

 

Apesar de ter previsto que tudo estaria pronto para o primeiro salto em dois dias, somente uma semana depois os preparativos estavam completos. Neste período, fui diariamente a sua mansão, que era também a base operacional da máquina do tempo, para testes e treinos com o dr. Fomm, braço direito de Helenise. Deixei meu pai aos cuidados de empregados e parti, incerto de ter tomado a decisão correta. Na verdade, estava tremendo de medo, porém, aquilo era algo que eu realmente queria fazer, ainda que me matasse. Um evento como aquele, sem precedentes... Sim. Eu estava decidido. Apavorado, mas decidido. Helenise percebeu meu nervosismo e se apressou em dizer-me que já havia testado o saltador com um macaco.

  • Só para você saber que esta beleza já transportou tecido vivo e o trouxe de volta em são estado.

  • Tudo bem.

  • Agora quero que ouça bem minhas instruções. A máquina irá materializar-se numa altura considerável e você provavelmente vai sentir vertigem e náuseas, pelo menos nos primeiros saltos. Você vai estar equipado com seu jetpack ou mochila voadora, o que te permitirá voar somente na posição vertical, conforme nos três dias de treino que fizemos. A máquina do tempo ficará flutuando camuflada no mesmo lugar até seu retorno. Sua camuflagem funciona mais ou menos como a de um camaleão, ou seja, ela imita o ambiente local. Quando estiver flutuando, estará praticamente invisível para quem observar de longe, porém, quem passar a menos de dez metros poderá perceber que há algo ali. A máquina do tempo pode ser pilotada facilmente, como você pôde comprovar nos treinamentos, mas só tire-a do lugar quando realmente houver necessidade. Pegamos o modelo mais avançado de jetpack que existia no mercado e fizemos algumas alterações. Este que irá usar possui uma bateria de vida longa, porém, se precisar recarregá-la, deverá ir até o saltador. É importante lembrar que sentirá vertigem assim que for re-materializado, então aguarde alguns minutos antes de descer. Com o tempo, seu organismo irá se adaptar aos saltos. Estas armas que parecem pistolas futuristas são de fibra de carbono. Seu pente de munição possui quinze projéteis calibre .45, porém, só irá usá-las quando tiver sua vida ameaçada. Somente no caso de legítima defesa. Não quero que cometa assassinato em hipótese alguma. Sei que se sentirá tentado a cometer homicidio em algum momento. É normal. Eu também me sentiria, ficando diante de Hitler, por exemplo, mas é errado, ainda que isso impedisse a segunda guerra mundial de ter se iniciado. Dentro de sua jaqueta, grudados ao colete à prova de balas, há mais oito cartuchos pras pistolas. Cada um deles pode ser usado também como explosivo. Cada vez que acionar o botão vermelho, terá mais dez segundos antes da explosão das cápsulas. Se só apertar uma vez, terá só dez segundos, portanto, tome cuidado. Seu cinto tem pequenos compartimentos que contém pastilhas acinzentadas. Elas possuem todos os nutrientes necessários a sua sobrevivência, caso não encontre comida. Não tome mais de três delas por dia ou terá uma baita desinteria. Contra tiros, além do colete, há joelheiras, tornozeleiras, coxeiras, e o capacete. Todos são feitos do mesmo material, capaz de conter uma bala de fuzil, a não ser o capacete, que é feito de um material ainda mais resistente. Outra coisa que precisa saber sobre o capacete é que somente estando com ele poderá ver o saltador à distancia, pois seu visor tem lente especial que o permite enxergar com perfeição até no escuro. É o que existe de mais High Tech sobre visão noturna. Ao apertar a fivela de seu cinto, acionará um dispositivo de aproximação no saltador temporal. Isso o trará diretamente até você, onde estiver, porém, sua velocidade máxima é de somente dez quilômetros por hora. Seus únicos pontos vulneráveis são os braços, ante-braços, mãos, pés, pescoço, virília e aparelho genital, portanto, proteja essas regiões mais do que todo o resto do corpo. Apesar das armas e apetrechos, sua maior garantia de segurança será o botão que se encontra na palma da luva esquerda. Se ele for pressionado por três vezes com intervalo de um segundo para cada toque, você será imediatamente tele-portado para dentro do saltador temporal, que está programado para retornar pra base imediatamente após esta ação. Ou seja, sua missão naquele trecho do tempo estará terminada. Seu capacete, além de ser à prova de balas possui desembaçador e em seu interior, colado a sua testa, há uma micro-filmadora de alta resolução que irá registrar todos os seus momentos em suas missões. Há uma dessas dentro do saltador também. Afinal de contas, eu e minha equipe também merecemos vislumbrar. Junto a seu tornozelo direito estará uma faca de caça à sua disposição. Agora o dr. Fomm vai ajudá-lo a se vestir. Ah, sim... Já ia me esquecendo. Já lhe falei sobre isso durante a semana, mas é sempre bom relembrar. Seu capacete tem sistema de tradução automática. Sua voz real não será ouvida por ninguém enquanto usá-lo. Todos irão ouvir uma voz eletrônica na língua ou dialeto que você programar. Quanto a você, irá ouvi-los falar, mas sua língua será simultaneamente traduzida para você pelo microfone de seu capacete. A programação deverá ser feita no computador da máquina do tempo antes de você sair dela, porém, não se preocupe. No evento de hoje, já fiz isso. Você falará em português, mas ouvirão você em indonésio. Muitos habitantes da ilha falam Sundanês e Javanês, mas quase todos entendem a língua oficial, então a programei pra você. Todo o material que vai usar é de última geração e portanto, levíssimo. Boa sorte.

Após quase quarenta minutos, depois de verificar e re-verificar toda a minha indumentária, fui levado até o interior da máquina, onde havia uma confortável poltrona em que me sentei. O saltador foi então fechado e todo som do lado de fora, bloqueado. Eu só podia ver a movimentação dos cientistas e de Helenise, que sorria feito uma criança. O dr. Fomm se dirigiu até o computador principal e digitou algo. Ouvi um zumbido agudo nos ouvidos que quase me deixaram surdo. Fechei os olhos e comecei a gritar, mas quando fui gesticular para que parassem com tudo, percebi que já não estava mais no laboratório, e sim num plano mais elevado, onde pássaros voavam a poucos metros de mim. Eu não acreditei no que estava acontecendo. Eu realmente não acreditava que toda aquela loucura havia mesmo dado certo. Dias atrás, Helenise me disse que me mandaria para um trecho acima do mar, entre as Filipinas e a Indonésia, na manhã do dia vinte e cinco de dezembro de 2004, em pleno natal. Eu teria menos de um dia para convencer as autoridades locais de que haveria uma catástrofe e que deveriam evacuar toda a área. Um tremor de nove graus na escala Richter estava para atingir a Malásia, Sri Lanka, Índia e outras nações. Helenise não quis me enviar dias antes, de maneira que eu teria mais tempo, porque temia que o saltador fosse encontrado. Se destruído, eu ficaria preso para todo o sempre naquela linha temporal. Helenise, pensando nisso, criou um sistema de alarme em forma de bipe para me informar, caso o computador da máquina do tempo identificasse uma possível ameaça. Não senti enjôos em momento algum, mas a tonteira foi terrível. Quando me senti melhor, abri a porta do saltador e ao fechá-la, toda a máquina se camuflou. Foi uma cena fantástica. Por curiosidade, ativei o mecanismo de visão especial de meu capacete e pude vê-la como realmente era novamente. Tornei a desligá-lo e ela voltou a praticamente desaparecer. Tal qual Helenise havia dito, dava para se perceber que algo estava ali, porém, de maneira fantasmagórica. Um vulto esbranquiçado. Voei em direção a costa da Indonésia na velocidade máxima de meu jetpack, que são de quarenta quilômetros por hora. Tinha pressa de chegar até aquela nação, que foi a mais atingida pela catástrofe. Somente uma hora e quarenta minutos depois eu chegava ao litoral. Havia vários nativos e alguns estrangeiros na orla, próximos a um flat. Alguns bebiam, sentados em cadeiras de praia e outros se banhavam. Ficaram muito surpresos com minha chegada, pois apesar dos jetpacks existirem desde os anos sessenta, inventados por Wendell Moore, só viraram moda depois de 2010. Desci ao chão arenoso e me dirigi até o hotel, gritando para os que pudessem me ouvir na praia para irem pras suas casas e avisar ao máximo de gente possível que haveria um maremoto no dia seguinte. Aquilo parece ter surtido o efeito desejado. As pessoas ali presentes olhavam para o mar e em seguida corriam para longe. Os que não puderam me ouvir acabaram por seguir os outros, mesmo não sabendo do que se tratava. Quando finalmente cheguei saguão do flat, com ar autoritário, mandei o recepcionista avisar a todos os hóspedes para sair dali. Ele me olhou com muita reprovação e disse-me que não faria nada. Passei a bater de porta em porta, avisando a todos do perigo iminente, mas o tal rapaz chamou os seguranças do hotel, que eram dois orientais de quase dois metros de altura, mal encarados. Eles me chamavam de louco, me chingavam e passaram a me agredir, quase sempre machucando suas mãos contra meu colete e o capacete. Um deles me deu uma gravata e quando o outro ia me pegar pelas pernas, bati com meus pés contra seu peito com toda força. Isso enfureceu terrivelmente o homem, que sacou um revolver. Assutado, peguei uma de minhas pistolas no coldre e atirei para o alto. O tal segurança não pensou duas vezes. Disparou cinco vezes contra mim, à queima-roupa. Desesperado, me desvencilhei do homem de apertava meu pescoço com força e pulei por uma janela, acionando rapidamente minha mochila voadora. Fugi dali o mais rápido que pude. Em baixo de uma palmeira, apavorado com aquela situação, verifiquei se alguma das balas havia atravessado meu colete, mas felizmente, como sempre, Helise estava certa em suas afirmações. Fiquei ali parado alguns minutos, imaginando o quão idiota fui ao ter aquela atitude. O que eu pretendia? Criar histeria em massa? Meu dever era ir até as autoridades competentes. Decolei, indo em direção ao centro da cidade de Manado. Ao chegar lá, pousei, seguido pelos olhares atônitos do povo indonésio. Minha visão causava-lhes um espanto incrível. Pareciam estar vendo um alienígena andando pelas calçadas de Manado. Em meus passos firmes e apressados, passei diante do que pude perceber se tratar de uma rádio local. Adentrei-a, na certeza de ter pouco tempo para cumprir o meu objetivo, mas fui barrado por um gigante. Era mais um segurança, desta vez da rádio. Disse-lhe que me apresentasse ao diretor, mas este se negou. Alguém que estava lá dentro ouviu nossa conversa e veio ver do que se tratava. Ao olhar pra mim, aquela pessoa, que depois vim saber que era um locutor, sorriu.

  • Mas que loucura é essa? O que está vestindo?

  • Amigo, sei que não vai acreditar no que vou lhe dizer, mas estou vindo de 2027 e preciso avisar aos habitantes da ilha, assim como das nações vizinhas do perigo que correm. Amanhã pela manhã, um terremoto vai se originar a aproximadamente quinze quilômetros abaixo do nível do mar, próximo a cidade de Bengkulu, na ilha de Sumatra. Por causa dele, um tsunami vai atingir vários países do Sudeste Asiático. Você pode ajudar a poupar vidas humanas. Me coloque no microfone. Deixe-me falar.

Fiquei ali quase quinze minutos, contando em detalhes o que estava para ocorrer. Quando concluí, o homem sorriu.

  • Meu amigo, você faria mais sucesso em um programa de auditório. Posso conseguir isso pra você com alguns conhecidos.

  • Então faça. Faça agora.

  • Não é assim que as coisas funcionam. Posso marcar algo pra você para daqui a algumas semanas entrar no ar.

  • Não tenho tanto tempo, mas você acaba de me dar uma idéia. Onde consigo entrar no ar ao vivo?

  • A rede de TV mais próxima fica muito distante daqui.

  • Onde?

O executivo anotou o endereço em um papel e apontou a direção. Decolei imediatamente, agradecendo pela ajuda. Ele ficou horrorizado ao me ver voar. Acho que não sabia que era pra aquilo que serviam minhas mochilas voadoras. Cheguei ao local após horas de vôo, e, antes de entrar pela janela do prédio, engoli uma das pastilhas alimentares. Estava morrendo de fome. Não foi necessário quebrar a vidraça, pois uma janela estava aberta. Somente duas funcionárias me viram entrar, mas logo, todo prédio já sabia de minha presença, pois elas passaram a gritar como loucas que alguém havia invadido o local. Cinco seguranças de uniforme e quepe adentraram o recinto, de armas em punho, me mandando deitar no chão e pôr as mãos na cabeça. Eu não podia deixar intimidar novamente. Controlei meu medo e disse a eles que precisava transmitir uma mensagem ao vivo. Um deles comunicou em seu rádio que um terrorista estava fazendo exigências e que mandassem a policia imediatamente para o local. Me aproximei deles tentando dialogar, falando sobre o terremoto e sobre o tsunami. Disse a eles que várias vidas poderiam ser salvas, talvez até de parentes deles. Nada adiantou. Quando já estava a dois metros deles, o mais alto pulou sobre mim, mas apliquei-lhe uma cotovelada no queixo que quase o fez desmaiar. Os outros, por instinto, abriram fogo. Nenhum tiro acertou um dos poucos pontos vulneráveis em mim. Me senti sobre-humano quando pararam de atirar, admirados por eu ainda estar de pé. Neste momento, a policia chegou e encheu a sala. Quando me vi totalmente cercado, raciocinei rápido.

  • Não atirem. Os seguranças tiveram muita sorte em não ter acertado a bomba.

O oficial da policia que parecia estar no comando da operação franziu o senho.

  • Que bomba? Do que está falando.

  • Está vendo esta mochila metálica nas minhas costas? Dentro dela há explosivo plástico o suficiente pra demolir todo esse prédio. Este botão em minha luva esquerda é o detonador. Não adianta chamar franco atiradores, pois seus amigos ai já perceberam que sou à prova de balas.

  • O que você quer, afinal?

  • Quero um cameraman e uma televisão ligada no canal desta emissora aqui agora. Vou fazer uma declaração ao vivo. Após isso, me entrego a vocês. O que estão me olhando? Eu disse agora.

Os policias se entre-olharam e começaram a dar marcha a ré vagarosamente. Ficou claro que pretendiam abandonar o local o mais rápido possível.

  • Parem todos onde estão. Somente o comandante da operação pode se retirar. Todos os outros permanecerão aqui.

A ordem foi dada e obedecida. Podia-se ver a tensão no rostos daqueles homens. É claro que o oficial ia tratar de evacuar todo o prédio antes de ceder as minhas exigências, se é que cederia. Tensos minutos se passaram. Saí de perto das janelas, receioso em levar uma bala disparada por uma espingarda de mira telescópica. Após quase vinte minutos, um cameraman, ou policial disfarçado entrou no recinto, seguido pelo comandante, que trazia uma televisão nas mãos. Ele ligou-a na tomada e sintonizou no canal que eu lhe havia pedido. Uma repórter falava em tom de apreensão que um homem havia invadido a sede daquela emissora e que após intenso tiroteio, várias pessoas haviam sido feitas reféns. Ela dizia ainda que o tal homem estava fortemente armado e que possuía inclusive uma bomba colada ao corpo. Alegou que provavelmente se tratava de terrorista islâmico. Sorri neste momento. Quanta idiotice. O cameraman ligou a filmadora e neste momento ouvi-a dizer que me passaria a palavra ao vivo. Quando não mais ouvi sua voz, olhei na direção da televisão e pude ver minha própria imagem. Meu rosto não aparecia. O visor de meu capacete era espelhado. Não perdi tempo.

  • Quem vos fala não é um terrorista e sim um cientista. Este foi o meio que encontrei de levar ao conhecimento de vocês uma catástrofe que está para acontecer amanhã e irá atingir não só a Indonésia mas também vários países vizinhos. Minhas pesquisas descobriram que um terremoto no fundo do mar, nas proximidades, irá gerar um violento tsunami amanhã pela manhã. Este é o meu alerta ao povo do Sudeste Asiático. Não fiquem próximos ao litoral. Estrangeiros, voltem para seus países hoje mesmo. Evacuem toda a costa. Eu não estou brincando. O tsunami vai ocorrer com cem por cento de certeza. Protejam-se. Salvem suas vidas.

Corri o mais rápido que pude em direção a mesma janela por onde entrei e saltei pra fora. Ouvi os suspiros que causei não só nas pessoas daquele andar, mas também dos milhares de curiosos que se aglomeraram diante do prédio. Na certeza de ter salvo muitas vidas, me parti na direção do saltador temporal, olhando em volta de tempos em tempos, para saber se não era seguido por um helicóptero ou outro tipo de aeronave. Cheguei ao meu destino por volta das cinco horas da manhã. Horário local. Entrei na máquina do tempo e adormeci. Foi um dia duro. Acordei com um estrondo. Me preparei para acionar o computador e retornar ao meu tempo, achando que fosse um jato das forças armadas em meu encalço, mas logo percebi que o som vinha de baixo. Eram as ondas assassinas. Nada mais eu poderia fazer. O que estava ao meu alcance, fiz. Fiquei ali, parado, admirando a força das águas. Sintonizei o computador na freqüência do canal da rede de televisão que no dia anterior eu havia invadido. Um repórter falava sobre o incidente do lunático voador que fugiu após sua declaração desconexa à TV. Em poucos minutos, sua transmissão foi interrompida e em seu lugar apareceu, ao vivo, a mesma repórter que eu havia assistido pela televisão me chamar de terrorista, anunciando, estupefata, o tragédia que acabara de acometer o litoral. Ouvi também ela me convocar para uma entrevista pacifica em seu jornal, dando garantias e garantias de que a queixa de invasão seria retirada, assim como tantas outras. É claro que eu jamais iria. Meu trabalho ali estava concluído. Permaneci por mais uma semana na Indonésia, ajudando no trabalho de resgate as vítimas. Fiquei sabendo que o número de óbitos foi de menos de um terço do total dos que houve em minha linha temporal. Meu primeiro trabalho foi um sucesso. Salvei centenas de vidas. Se mais gente tivesse acreditado... Se mais gente tivesse tomado os cuidados apropriados... Se as autoridades tivessem colaborado... Este número teria sido reduzido a praticamente uma ou duas dúzias de perdas humanas. Entrei na máquina do tempo, completamente sujo e exausto. Dei uma última olhada em volta e acionei o computador. O zunido nos ouvidos quase me enlouqueceu, porém, durou poucos segundos. Quando voltei a abrir os olhos, Helenise acenava pra mim, como se quisesse dizer até logo. Achei aquilo muito estranho, mas somente ao sair do saltador temporal, percebi que tudo e todos estavam nos mesmos lugares desde o momento em que parti.

  • Bem vindo de volta, meu filho.

  • Helenise... Parece...

  • Sim, eu sei. Pra nós, o período em que você permaneceu lá não faz diferença. Para esta linha temporal, no momento em que você foi enviado, você também retornou. Pra nós, foi mais rápido do que um piscar de olhos. Estou ansiosa pra saber o que aconteceu.

  • Você não vai acreditar. Minha primeira missão foi um sucesso.

Assistimos todos juntos o decorrer de toda a minha aventura naquela linha temporal. Eu avançava a gravação nos momentos menos importantes, para que pudéssemos assistir a todo o evento de uma semana em algumas horas. Helenise não parou de chorar. Percebi que emagreci mais de dez quilos e isso preocupou-a muito. Me passou uma dieta para ganhar peso e então fui para casa. Dentro de um mês, estaria partindo para outra jornada temporal.

 

 

 

 

As Torres de Manhattan

 

 

 

 

Dirigi até a fazenda com o peito cheio de saudade. Abracei-o forte ao chegar e cometi meu primeiro erro desde que me tornei um viajante do tempo.

  • Olá pai... Como vai o senhor? Quero que saiba que morri de saudades durante todo esse tempo em que não nos vimos.

  • Do que você está falando? Não estamos nem vinte e quatro sem nos ver.

  • Ah... O que eu quis dizer é que senti tanta saudade que parece que não vejo o senhor há dias.

  • Entendo. O que você andou fazendo? Está abatido. Veja seu rosto. Está magro e pálido. O que foi que aconteceu? Parece que perdeu uns dez quilos em menos de um dia.

  • Não se preocupe. Entrei pra uma academia hoje. Fiquei por lá o dia inteiro. Estou fazendo musculação, step e aeróbica, além de ginástica tradicional. Malhei tanto o tempo inteiro que até esqueci de comer algo. Por tudo isso perdi peso.

Meu pai, que apesar de velho e doente não tinha nada de bobo, percebeu meu nervosismo.

  • Você está me escondendo algo, filho?

  • Não, pai. Claro que não. Está tudo em ordem, eu garanto. Eu nunca seria capaz de esconder algo do senhor.

Neste momento, ao ouvir minhas palavras, meu pai chorou. Com as mãos no rosto, começou a soluçar.

  • O que houve, pai? Eu não disse ao senhor que está tudo bem? Pai... Vamos. Pare com isso e me diga logo. O senhor está sentindo alguma dor?

  • Não, meu filho. Não se trata disso. Foram sua palavras. Eu sei que nunca me esconderia algo. Já eu, não posso dizer o mesmo. Estou em pecado.

  • Como assim? O que quer dizer?

  • Filho. Já passou da hora de você saber a verdade. Não posso mais ser um pai tão ruim.

  • Que verdade, pai? Fale logo.

  • Raul... Registrei você três anos após seus pais verdadeiros me entregarem você. Este foi meu primeiro pecado para contigo. Seu pai biológico me fez prometer que eu não o faria, pois sua intenção era deixá-lo aos meus cuidados por curto período. Eles não foram pra São Fidélis, mas sim pra São Paulo, atraídos por uma proposta de emprego para ambos trabalharem numa casa de família rica. Tiveram de deixar você aqui porque a família exigia que não tivessem filhos. Sua tia, irmã de sua mãe verdadeira já trabalhava com eles havia anos e foi ela quem fez a indicação, mas foi categórica. Nada de filhos. O plano deles era trabalhar o suficiente para comprar uma casa e um pequeno comércio aqui na região, o que não seria muito difícil, uma vez que ganhariam bom salário e não teriam despesas, pois morariam e se alimentariam na mansão.

  • E o que deu errado?

  • Após quatro anos trabalhando com os paulistas, recebi uma carta de seu pai, que na verdade é um funcionário antigo de minha fazenda. Seu nome é Henrique. Sua mãe não sabia que você é filho dele. Abri a carta e me desesperei com o conteúdo. Henrique já havia juntado dinheiro suficiente e estaria retornando com sua mãe, Maria, dentro de seis meses. Imediatamente enviei-lhe outra carta alegando que você havia contraído meningite e que, apesar de nossos esforços, você não havia resistido. Seu pai, desconfiado, veio até a fazenda e viu você, mas eu já tinha dado dinheiro aos meus peões para dizer a ele que você era meu filho e que o dele havia realmente morrido de meningite no hospital. Louco de raiva e arrependimento, seu pai me xingou alguns palavrões terríveis, me amaldiçoou e seguiu de volta para São Paulo. Desde então, não soube mais noticias de nenhum dos dois. Filho, sei que deve me odiar, agora que sabe de toda a verdade, mas eu teria morrido, se naquele tempo, Henrique tivesse tirado você de mim. O que fiz foi por puro amor. Você é e sempre será o filho que nunca tive.

  • Não te odeio, pai, mas não posso deixar de chorar pelo que estou ouvindo. Tudo bem, meu pais verdadeiros então não me abandonaram, mas uma carta somente, quatro anos depois?

  • Seus pais não sabiam escrever, Raul.

  • Isso não é motivo. Me diga uma coisa. Meu nome... Quem escolheu? Você ou ele?

  • Foi Henrique. Era o nome de seu avô, pai dele. Eu o conheci quando ainda era vivo.

  • Há algum parente meu que o senhor conheça aqui na cidade?

  • Não. Se existem, desconheço.

  • Obrigado por ter me contado tudo. Antes tarde do que nunca.

  • Então você não me odeia?

  • Não. Estou apenas um pouco magoado, mas vai passar. Já que não me escondeu para o resto da vida, também vou lhe contar algo importante que prometi a alguém jamais passar adiante, mas somente se me der sua palavra de que isso morre com o senhor. Estou quebrando uma promessa que fiz a alguém muito querida e não quero me arrepender.

  • Você tem minha palavra, filho.

  • Sabe por que realmente emagreci tanto num curto período de tempo?

  • Gostaria muito de saber.

  • Eu estava salvando milhares de vidas de uma catástrofe natural do outro lado do planeta.

  • É...?

  • Sim. Ajudei em resgates, invadi um canal de televisão. Levei vários tiros e até apanhei um pouco de alguns seguranças de um flat.

  • Isso parece mais uma história de pescador.

  • Eu sabia que o senhor não acreditaria, mas queria que tivesse um pouco de orgulho de mim.

  • Eu tenho orgulho há vinte e tantos anos, meu filho.

  • Pai... Me diga só mais uma coisa. Qual minha idade verdadeira?

  • A mesma que se encontra em sua certidão de nascimento. Henrique me disse o dia, hora e maternidade onde você nasceu no momento em que me confiou você. A única mentira que está escrita em sua certidão é o nome do pai e da mãe.

  • Não, não é.

 

 

 

 

Desculpe, mas essa era apenas uma prévia. Em breve estarei postando aqui todo o restante do conteúdo deste livro.